sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Porque ler Batismo de Sangue...

No inicio da década de 1960, a Igreja Católica passou por profundas mudanças, que foram desencadeadas pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, convocado pelo então Papa João XXIII. O processo de “renovação” da Igreja levou muitos militantes cristãos a atuarem diretamente nos movimentos sociais. No Brasil esse processo foi vivido de forma bastante intensa, principalmente a partir das ações de Dom Helder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga e dos frades dominicanos.
O envolvimento dos frades dominicanos com grupos de esquerda e a luta destes no período de repressão política no Brasil, fruto do golpe de 1964, são alguns dos temas abordados pelo livro Batismo de Sangue, de Frei Betto. Carlos Alberto Libânio Christo nasceu em 1944 em Minas Gerais e no final dos anos 1950 ingressou na Ordem Dominicana. Adepto da Teologia da Libertação, Frei Betto viveu intensamente o processo de resistência à ditadura, o qual relatou nesse livro que foi publicado originalmente em 1982 e já foi traduzido na para o francês e o italiano.
O autor descreve na referida obra, o retrato do líder de um dos principais grupos de resistência armada, que foi Carlos Marighella, bem como as lutas travadas durante o regime ditatorial brasileiro. Em “Batismo de Sangue, não há uma ordem cronológica dos capítulos, já que estes, abordam, a partir do olhar de Frei Betto, diferentes aspectos desse processo vivenciado no Brasil por mais de duas décadas. O livro é dividido em seis capítulos que são intitulados respectivamente como: Carlos o itinerário; Sul a travessia; Prisão o labirinto; Morte, a cilada e Tito, a paixão. No primeiro capitulo do livro, Betto apresenta e analisa a trajetória de vida do líder revolucionário baiano Marighella, desde o seu nascimento em 1911 até a sua saída do PCB (Partido Comunista Brasileiro) em 1968 e a conseqüente constituição da ALN (Ação Libertadora Nacional).
Carlos Marighella acreditava que a única forma de se combater diretamente a Ditadura seria através da luta armada. Por esse motivo foi expulso do PCB e posteriormente fundou a ALN, que propunha, além de derrubar a ditadura militar, formar um governo revolucionário, expulsar do país os norte-americanos, expropriar os latifundiários, bem como outras medidas de caráter revolucionário e socialista. O líder baiano sempre afirmava que “o segredo da vitória é o povo”, e por causa dos vários seqüestros, assaltos e ações armadas, por ele lideradas, tornou-se um dos principais alvos dos militares brasileiros.
Os frades dominicanos brasileiros davam à ALN de Marighella apoio logístico, principalmente no tocante à acolhida dos militantes em locais seguros e o transporte desses de uma cidade para outra. Tal apoio era de fundamental importância para a sobrevivência do movimento guerrilheiro, principalmente em se tratando de uma instituição ligada à Igreja Católica, que era, naquela época, uma das poucas que não sofriam intervenções do Governo Militar.
Frei Betto narra no segundo capítulo da obra como deu esse apoio aos militantes revolucionários no período em que esteve no Rio Grande do Sul, preparando-se para o exílio na Alemanha. Durante sua estadia no Seminário Cristo Rei, Betto descreve a experiência de ter contribuído com a passagem de vários refugiados pelas fronteiras no Sul do país, como é o caso de personagens importantes da resistência a exemplo de Joaquim Câmara Ferreira e do jornalista Franklin Martins.
A obra de Frei Betto - que conquistou o Prêmio Jabuti de melhor livro de memórias em 1982 - consegue descrever de forma bem minuciosa, vários aspectos da vida de Marighella, bem como a participação dos frades nos episódios que envolveram a morte do líder revolucionário no dia 4 de novembro de 1969. O assassinato de um dos mais perigosos terroristas brasileiros, como a Ditadura classificava Marighella, fora planejado de modo a não apenas eliminar o maior inimigo do regime militar, mas também jogar a esquerda contra os frades dominicanos, enfraquecendo a oposição à ditadura.
Da noite pro dia os dominicanos passaram de colaboradores da guerrilha a inimigos e traidores dessa. Frei Betto discorre no quarto capitulo do livro, intitulado “Morte, a cilada”, sobre a forma como os militares conseguiram arrancar dos freis Fernando e Ivo, informações que os levaram a Carlos Marighella. Depois de duras torturas lideradas pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, os dois frades presos, em pleno aniquilamento físico e psíquico, confessaram de que forma se encontravam com Marighella. Betto aborda de forma bem detalhista o processo de torturas à que os frei foram acometidos, fato que torna o capítulo emocionante e ao mesmo tempo bastante revoltante.
Vale ressaltar, que o livro homônimo de Frei Betto, deu origem em 2006 a um filme com mesmo título. O longa-metragem foi idealizado e dirigido por Helvécio Ratton - que também militou nos movimentos de oposição à Ditadura - e se aproxima do livro, já que, consegue reportar de forma bem similar, através de cenas emocionantes e bem elaboradas, todo o conteúdo existente na obra de Frei Betto. O filme só distancia-se do livro por dar um maior enfoque aos frades dominicanos, não apresentando da forma descrita por Frei Betto a trajetória de Marighella.
Em “Batismo de Sangue”, Betto, aborda ainda, o período em que viveu na clandestinidade, bem como a sua prisão e transferência para São Paulo, onde reencontrou seus confrades Ivo, Fernando e Tito. Um dos mais comoventes trechos do livro se passa nas celas subterrâneas do DEOPS (Departamento Estadual de Ordem e Política Social), quando Betto e os demais frades presos, celebram uma missa. O autor descreve de maneira emocionada, a experiência de ter partilhado a fé cristã com tantos presos políticos que eram comunistas. Frei Betto diz que todos ali reunidos rezaram e celebraram a eucaristia, comungando remidos pelo “batismo de sangue”. Daí o título do livro, que faz essa relação entre a fé e a sua prática através da vivência encarnada do Evangelho.
Frei Betto narra no livro, dentre outras coisas, a experiência de ter convivido durante mais de um ano com diferentes presos políticos, no Presídio Tiradentes em São Paulo, onde eram realizadas inúmeras discussões e atividades por parte desses. Durante a prisão no “Tiradentes”, Betto e os demais dominicanos sofreram os horrores da tortura, mas permaneceram firmes na luta por justiça e igualdade. A experiência de ter sido preso é encarada por Betto como um processo de aprendizagem e por isso sempre afirmava que nem mesmo a prisão conseguiria lhe arrancar a liberdade. Na obra encontra-se também o dossiê completo sobre Frei Tito de Alencar Lima, que se tornou símbolo internacional daqueles que lutaram contra a ditadura. Frei Tito nasceu no Ceará e ingressou na Ordem Dominicana no início da década de 1960. Sua sensibilidade notável lhe conferiu um maior sofrimento por causa das torturas, principalmente as psicológicas, que lhes deixaram marcas irreversíveis.
Tito é descrito por seu companheiro Betto, como um apaixonado pela vida e pela luta social e por esse motivo, não se intimidou nem mesmo com as duras torturas sofridas, que aparecem no livro de forma chocante. Frei Tito foi um dos presos políticos que tiveram a liberdade em troca do cônsul da Suíça, que fora seqüestrado por grupos de esquerda no Rio de Janeiro. Após ser solto Tito é exilado primeiro no Chile e posteriormente na França, onde vive os últimos dias de sua vida. As duras lembranças das sessões de torturas no Presídio Tiradentes e o conseqüente desequilíbrio psíquico o levaram ao suicídio em agosto de 1974.
Há ainda no livro, referências a fatos políticos que envolveram a esquerda durante a Ditadura, como o Congresso da UNE, em 1968, em Ibiúna (SP), do qual Frei Tito participou diretamente; e os seqüestros, do embaixador norte-americano, no Rio de Janeiro e do cônsul suíço, em São Paulo. O duro período vivido no Brasil durante a Ditadura Militar deixou em milhões de brasileiros, marcas que jamais serão esquecidas e no livro Batismo de Sangue o autor deixa bem evidente de que forma esse processo ocorreu.
Para entender o livro é preciso reportar-se a esse longo período, quando proliferaram as lutas guerrilheiras, inspiradas tanto nas revoluções cubana e chinesa, quanto no exemplo do Vietnã, e cujos participantes foram banhados em sangue. Em alguns países, como a Argentina e a Guatemala, houve uma verdadeira guerra de extermínio, com dezenas de milhares de mortos ou desaparecidos. Enquanto isso as empresas multinacionais tiveram lucros gigantescos. Não foi à toa que os EUA foram determinantes na implantação das ditaduras e, posteriormente, no treinamento de militares para a ação repressiva.
A trajetória de luta dos frades dominicanos e a sua ligação com a ALN foi, inclusive, combatida pelos setores conservadores da Igreja e esse aspecto é abordado por Betto quando ele descreve a visita do então cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Agnello Rossi, que, avisado da prisão dos frades, preocupou-se apenas em saber se tinham sido presos celebrando missa. Esse trecho revela uma total falta de compromisso de quadros da Igreja com os frades e com a luta contra a ditadura, caracterizando até uma certa conivência com os militares.
Frei Betto e os companheiros dominicanos estão, sem sombra de dúvidas, entre os brasileiros que mais sofreram nesses anos de ferrenha opressão e “Batismo de Sangue” revela a firmeza e determinação dos frades em combater a ditadura, animados pelo desejo de “passar da palavra ao gesto”, de praticar os ensinamentos de Cristo acima de receios ou de conveniências pessoais, e a entrega desses à causa da emancipação democrática de nosso povo.
A obra de Frei Betto é fascinante a apaixona quem lê. O autor a todo o tempo evoca a liberdade e um dos importantes aspectos do livro é a denúncia dos métodos de tortura utilizados durante a ditadura. Os relatos de Betto são um verdadeiro testemunho de um homem que viveu e sentiu na pele os horrores do período de “escuridão” que o nosso país viveu entre as décadas de 1960 e 1980. Toda a obra é um grito de revolta contra o instinto destruidor do homem contra o homem. Frei Betto clama por paz, amor, direitos iguais e uma vida com dignidade.
Dessa maneira, o livro consegue emocionar e ao memso tempo suscitar a revolta, por conta das atrocidades que nele são narradas. É importante conhecer a obra e através dela descobrir a fascinante historia desses brasileiros que foram “batizados por sangue” e doaram a vida por uma causa: a luta pela emancipação democrática de nosso povo.
Betto e seus companheiros dominicanos, assim como Marighella e tantos outros militantes revolucionários, viveram e lutaram contra a repressão e as atrocidades por ela cometidas e nos deixam um grande legado: a convicção de que todo e qualquer indivíduo é agente transformador da história. Portanto, deve-se compreender que “Batismo de Sangue” é um verdadeiro manual para aqueles, que, a exemplo desse grandes heróis da pátria, acreditam na possibilidade de construção de uma sociedade mais justa, fraterna e onde a liberdade seja vivenciada em plenitude.

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